Ary Brasil Marques
A história das religiões nos mostra que, de tempos em tempos, os homens se julgam únicos detentores da verdade e procuram dar combate aos próprios companheiros de ideal, formando verdadeiros bolsões separatistas ou criando novas seitas ou maneiras particulares de ver as coisas. O Espiritismo, sendo uma doutrina composta de espíritos dos mais diferentes graus de evolução, não poderia ficar imune a essas tentativas de cisão e de divisão.
Allan Kardec previu tudo isso e nos legou diretrizes importantes para que os espíritas não se lancem uns contra os outros e, quem procurar estudar detalhadamente todos os livros da Codificação, verá que “o bom senso encarnado” repete em várias ocasiões e em todos os seus livros o seguinte:
1. – O Espiritismo avançando com o progresso, jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ele se modificará nesse ponto; se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. (A Gênese, cap. I – Caráter da Revelação Espírita);
2. – Não devemos nos preocupar com dissidências ou divergências que estão mais na forma do que no fundo e, que o importante é observarmos os princípios fundamentais e, ainda que a base de tudo é o amor de Deus e a prática do bem. (O Livro dos Espíritos, Conclusão, VIII).
Ora, muita gente anda preocupada em proteger Kardec, resguardar Kardec, não admitir nada que não tenha sido escrito por Kardec e anatematizar quem busca, além de Kardec e justamente com Kardec, outras fontes de estudo.
Os defensores de Kardec (e, desde quando a verdade precisa de defesa?) parece que não estudaram Kardec com cuidado. Pois é o próprio Codificador quem nos diz que as verdades nos são dadas pouco a pouco, à medida de nossa evolução e, que a verdade absoluta só conseguiremos ao atingir a perfeição. Diz ele ainda, que o Espiritismo é doutrina dinâmica, que vai avançando e se ampliando com o progresso do espírito e não disse a última palavra, nem está totalmente acabada como doutrina.
Cremos que, antes de levarmos o amor e a fraternidade para todos os homens, quebrando as barreiras do personalismo, das posições sociais, das raças e credos diversos, precisamos ir exercitando tudo isso junto aos nossos companheiros de ideal espírita, mesmo que eventualmente, aqueles companheiros não pensem integralmente como nós, mesmo porque, isso é materialmente impossível devido à heterogeneidade dos espíritos que habitam nosso orbe.
Santo Agostinho, no fecho do Livro dos Espíritos, nos diz o seguinte: “Por muito tempo, os homens têm se dilacerado mutuamente e anatematizado em nome de um Deus de paz e de misericórdia, ofendendo-o com tal sacrilégio. O Espiritismo é o laço que os unirá um dia, porque lhes mostrará onde está a verdade e onde está o erro. Mas haverá por muito tempo ainda, escribas e fariseus que o negarão, como negaram o Cristo. Quereis saber, pois, sob a influência de quais Espíritos estão as diversas seitas que dividem o Mundo? Julgai-as pelas suas obras e pelos seus princípios. Jamais os bons Espíritos foram instigadores do mal; jamais aconselharam ou legitimaram o homicídio e a violência; jamais exercitaram os ódios dos partidos nem a sede de riqueza e de honras, nem a avidez dos bens da Terra. Só aqueles que são bons, humanos e benevolentes para com todos, são os preferidos e são também, os preferidos de Jesus, porque seguem o caminho que lhes indicou para chegarem até Ele.”
Irmãos, não podemos crer que somos os únicos donos da verdade. Cada um de nós possui uma parcela da verdade, de acordo com o seu conhecimento e sua evolução. Amemos e respeitemos nossos irmãos de crença espírita, como um primeiro passo para que um dia, possamos amar e respeitar TODA A HUMANIDADE.
Essas considerações me vieram ao reler um excelente texto do saudoso Leopoldo Machado, denominado O Diabinho Coxo. Para os espíritas se analisarem e se tornarem mais fraternos, transcrevo abaixo o texto em questão.
“DIABINHO COXO”
Leopoldo Machado
A história é simples, mas expressiva. E talvez, cheia de observações e ensinamentos. Contou-na-la, ilustre confrade, que fora transmitida por um irmão da espiritualidade. Achamo-la de tal maneira interessante, que não sopitamos o desejo de pô-la em letra de forma, para irmãos que têm olhos de ver e inteligência de compreender, como se diria em linguagem evangélica.
Vamos, porém, à história:
A corte de Satanás estava agitada. Fora mister se convocasse uma assembleia extraordinária, de diabos, diabões e diabinhos, para tomar-se, oficialmente, conhecimento de fato e determinar-se medidas urgentes de defesa do reino do inferno.
É que aparecera na Terra, entre os homens, um inimigo seríssimo, que estava assestando golpes de morte na existência de Satanás, no inferno, nas penas eternas.
E Satanás na presidência, fundamentou:-
– É um inimigo terrível, que não se tem por onde se lhe pegue. Todas as campanhas que têm feito, resultaram inócuas e inúteis. Trata-se de um inimigo tão sério que, sem acreditar em nós, zombando do inferno e das penas eternas, matou a própria morte. A morte não apavora seus asseclas, que, sem temores do inferno e de nós, se esforça, por serem bons, ordeiros, laboriosos, honestos…
– O nome deste inimigo? Deblaterou, indignado, a vomitar enxofre e pólvora pelas narinas, um diabão.
– É o Espiritismo. Imaginai que chegou ao extremo de ensinar que os diabos de hoje podem ser pela lei da tal reencarnação, os anjos de luz do amanhã; que, sendo Deus ‚ pai de todos, nenhum dos filhos seus irá para o inferno, por toda a eternidade; que com ele, Satanás está desmoralizado, o inferno falido, as penas eternas invalidadas, e a morte inexistente…
– Pois, ataquemo-lo em nome da Ciência! Berra um diabo com fumaças de sábio.
– Atacá-lo em nome da Ciência? Mas, ele presume-se a Ciência mesma. A Ciência da Imortalidade. Sábios e cientistas já se aproximaram dele para atacá-lo cientificamente e saíram atacados por ele, porque convertidos às suas leis. Foi bem este o caso do grande físico William Crookes, do naturalista astrônomo Camille Flammarion, do naturalista e respeitável Russell Wallace, dos médicos Paul Gibier, Gustavo Geley. Numa palavra, os homens como Ochorowicz, Aksakoff, Frederico Zoellner, Cronwell, Oliver Lodge e centenas deles. Basta analisar que um desses nomes chega a desafiar os homens de senso a estudá-lo sem se tornarem espíritas. O inimigo dispõe de tais provas e tal lógica científicas que não há adversário que logre a melhor na luta contra ele.
– Ataquemo-lo, então, em nome da filosofia! – rosnou um diabão velho, barbaças, dois grandes óculos assestados ao nariz adunco, a cofiar, filosoficamente, a longa barba.
– Em nome da Filosofia? Mas o biltre se diz a própria Filosofia. A filosofia do espírito, lógica, irrefutável, indestrutível. O Livro dos Espíritos, sua obra filosófica, quando apareceu há 120 anos, a maior autoridade do clero francês chegou a declarar do púlpito que “foi Deus que cometeu ao Senhor Allan Kardec a missão gloriosa de provar cientificamente a imortalidade da alma.” Ora, se vê, a filosofia do Espiritismo é também ciência. E trata-se de uma filosofia e de uma ciência tão práticas e tão fáceis, que as pessoas mais incultas compreendem facilmente.
– Estamos perdidos!
– É também Religião? – indaga um espírito das trevas, curioso.
– Quando apareceu o tal Livro dos Espíritos, dele disse uma autoridade do clero francês que, “praticando-se o que ensina o Livro dos Espíritos, tem-se feito o suficiente para ser santo na terra.” E um teólogo protestante escreveu que “se com a Bíblia não conseguia entender o Espiritismo, agora, com o Espiritismo é que compreende a Bíblia. É uma religião tão profunda, que dispensa dogmas e milagres, encenações e culto externo. E que salva sempre, visto como a ninguém condena irremediavelmente, ao inferno, que não existe para ele, as penas eternas, que para ele são invenções das religiões dogmáticas.
– Estamos, meus amigos e companheiros, às portas da falência, porque nossos aliados, os padres e pastores, não encontrarão brevemente, ninguém para nos enviarem.
– De mim, confesso que não sei que medidas tomar, porque ele, o Espiritismo, se apresenta também, feito moral e sociologia, pedagogia e arte. Até como Medicina, pois cura sem medicamentos e operações, a passes e água fluida e preces. Estamos derrotados, meus caros amigos!
– Peço a palavra, Sr. Presidente – ouviu-se uma vozinha fraca e esganiçada, que nada tinha da palavra de um diabo de classe. Era um diabinho coxo, magro e feio, muito pequenino.
– Para que pedes tu a palavra? – perguntou-lhe o Presidente, o grande Satanás.
– Eu queria também dar o meu palpite. Se valer experimentá-lo….
– Majestade, deixe-o falar, que, às vezes “de onde menos se espera…”- sugeriu um diabão respeitável.
– Com a palavra, pois, o diabinho coxo.
– Eminente Satanás, chefe supremo do reino do inferno, meu plano para combater e atrapalhar o Espiritismo é o seguinte: o Espiritismo pode ser realmente, estas coisas todas, mas os espíritas são homens como os outros, ainda cheios de defeitos e inferioridades. Homens que aceitaram o Espiritismo vindo de outras doutrinas diferentes, trabalhados por outras religiões e doutrinas materialistas. E ninguém se melhora de uma noite para o dia, que a natureza não dá saltos…
– Que quer dizer com isso?
– Que devemos atacar o Espiritismo, atrapalhando os espíritas. Explorando com jeitinho os defeitos e as vaidades dos espíritas. Atirando-os uns contra os outros, estaremos prejudicando o Espiritismo.
– Explique-se.
– Explico-me com muito prazer. Mas peço a atenção desta egrégia corte para o que eu vou explicar e sugerir.
– Enfiemo-nos entre os espíritas, nas suas sessões práticas, nos seus empreendimentos, nas suas atividades.
– Principalmente mistificando, fantasiemo-nos de espíritos de luz, de guias espirituais, que os espíritas apreciam mais, via de regra, a conversinha dos espíritos do que o estudo da doutrina, para aprenderem a discernir a verdade do erro.
– Aqui, por exemplo, há um médium que inspira confiança? Pois incensemos lhe a vaidade e, por seu intermédio, toca a dar comunicações bonitas, floreadas, com ideias de molde a isolá-lo da comunhão com os outros espíritas. E toca a dizer que o Espiritismo é aquilo que eles fazem, que não precisam fazer mais para estarem com a Verdade. Tudo isto, as comunicações assinadas por nomes respeitáveis, pouco importando que o estilo seja o mesmo e as ideias banais. Se é comunicação espírita, assinada por um grande nome e recebido por um médium de confiança, os espíritas na sua maioria, vão aceitando… Há pregadores cultos e palavrosos?
– Exploremos sua cultura e palavra, para através de uma e de outra, plantarmos a confusão, levando-os a expedirem doutrinas obtusas e absurdas, de assistência a necessitados, que ‚ por aqui que o Espiritismo está captando maior número de adeptos a questão teórica da Doutrina. A questão do corpo do Cristo, que podemos explorar à vontade, é maravilhosa para separar, cada vez mais, os espíritas!
– E riu-se, o diabinho coxo, antecipando vitórias a seu plano e prosseguiu:
– Há grupamentos de espíritas, em torno de programas de aproximação, para melhor desenvolvimento da Doutrina?
– Enfiemo-nos entre eles, despertando rivalidades em uns, invejas em outros, envaidecimentos nos mais atirados, desânimos e pessimismo em muitos… Há obras de vulto e de fôlego, que planejam em nome do Espiritismo? Formemos com os que negam apoio e solidariedade a elas, emprestemos-lhes ideias e argumentos seguros que tais obras não adiantam, não se farão… que se adiantassem, partiriam deles e de seu meio, por serem mais bem assistidos…
– Parece interessante plano! – admira-se um diabo respeitável.
– Projeta-se um largo plano de unificação do Espiritismo, de confraternização de suas entidades?
– Atrapalhemos, intuindo aos grupos que se querem aproximar, para que tais aproximações nunca se realizem. Tais ou quais grupos, ou instituições, se arvoram a dirigentes do movimento? Penetremos, jeitosamente, nelas e levemo-lo a esquecimento das lições do Evangelho, a traçarem leis e programas humanos, personalísticos, exclusivistas, de repulsa a tudo que vem de fora, a tudo que não saia de seu meio, de sua grei.
– Numa palavra, onde houver qualquer movimento de modo a colimar trabalho, solidariedade e tolerância, que são virtudes da divisa dos espíritas, porque as bases da diretriz do codificador do Espiritismo, ai nos metamos, explorando vaidades, pretensões, convencimentos e personalismos, que estaremos atrapalhando a marcha do Espiritismo…
– Compreendo, vale a pena estudar o plano, observou o Presidente.
– Estudar? Experimentar já e já! – sugeriu um diabão analista – que eu, de mim, acho-o excelente.
– E naquele mesmo instante, abriu-se o voluntariado do diabinho coxo, para porem, experimentalmente, o plano em ação. E saíram, imediatamente, levas de diabinhos coxos por toda parte, a distribuir intuições dissolventes, a se fingirem de espíritos de luz, a se esparramarem em comunicações bonitas, a atrapalharem justamente, planos e pessoas.
– Um mês depois as levas de diabinhos coxos voltaram radiantes.
– E então, êxito na experiência?
– Absoluto, majestade! A estas horas, desafiamos que haja na Terra, uma cidade, um meio espírita, uma organização, em que exista, entre espíritas, plena harmonia, em que todos se entendam admiravelmente, em que reine paz e concórdia, em que não se hostilizem fraternalmente.
E o autor do plano largou estridente e gostosa gargalhada! “
Sem comentários.
SBC, 03/02/2005.